domingo, 24 de abril de 2011

Sobre Arte - Augusto de Almeida




Augusto de Almeida


1. Introdução - o propósito deste texto


1.1. Definições: O Aurélio dedica um longo verbete à palavra arte. Entre outras explicações cita:"Capacidade que tem o homem de pôr em prática uma idéia, valendo-se da faculdade de dominar a matéria; atividade que supõe a criação de sensações ou estados de espírito de caráter estético carregados de vivência pessoal e profunda, podendo suscitar em outrem o desejo de prolongamento ou renovação".
Os conceitos em que pensamos ao usar a palavra arte são inúmeros. Comumente falamos das artes plásticas, da arte da música, do teatro, da literatura, da propaganda, do bem gerir uma empresa, da culinária, de amar, de fazer sexo, de manipular serrotes, de apertar parafusos, etc. Chamamos os cínicos de artistas e as crianças de arteiras.
Aqui coloco algumas idéias sobre arte numa acepção específica da palavra. Às vezes direi que isto ou aquilo é ou não é arte. Quero dizer que é ou não é arte no sentido a que me refiro neste texto.
1.2. O consenso atual: Nos tempos de hoje a opinião dominante confia de modo pouco crítico nas agências de análise de risco financeiro e na engenharia de grandes obras.
É verdade que nem sempre esses riscos são evitados e que as grandes obras às vezes desabam, mas isso não tem sido suficiente para abalar o consenso a respeito dessas agências e da engenharia. Os poucos que criticam alguns de seus usos e apontam os seus limites são vistos como excêntricos. Soa mais lógico questionar, por exemplo, a utilidade da arte.
1.3. Os defensores da arte: Já quem faz a apologia da arte freqüentemente usa um discurso incompreensível para não iniciados (às vezes desconfio que o seja também para iniciados), o que parece apenas confirmar sua inutilidade.
1.4. O propósito deste texto: Por isso pensei que passa da hora de falar de arte com a objetividade que os tempos requerem, com a clareza e a precisão que pretendem ter um balanço contábil ou um projeto de túnel de metrô. É esta a proposta deste texto.
2. O que é a obra de arte e quais são suas funções fundamentais
2.1. Olhando a arte: A cada momento em que olhamos uma obra de arte associamos às formas que vemos diferentes significados. Mesmo o artista que a faz, antes de fazê-la, pode atribuir-lhe alguns sentidos, ao fazê-la, outros e, ao findá-la, vê ali ainda mais coisas.
A obra de arte, portanto, tem um significado específico e diferente para cada um, a cada momento em que cada um a vê.
2.2. O objeto de arte: Por outro lado essa obra, a rigor, é um objeto como outro qualquer. Uma pintura, por exemplo, é uma superfície manchada de tinta. Ela só se torna arte quando quem a contempla a ela associa significados que vão além do imediato (além da superfície manchada).
2.3. O que é a obra de arte: Portanto, a obra de arte não é nem a coisa em si (a superfície manchada) nem os significados (nossos, necessariamente, como veremos adiante) que a ela associamos. É o conjunto de ambas as coisas. E ser o conjunto de ambas as coisas quer dizer, é até redundante afirmar, que a arte não pode prescindir de nenhuma delas.
2.4. O domínio da arte: Ora, em primeiro lugar, se a obra de arte só pode existir se houver um objeto de arte no mundo real, então o seu domínio (domínio num sentido análogo àquele usado pela matemática) é a forma, pois tudo que é do mundo real tem forma.
2.5. Os significados da obra de arte e o juízo: Já os significados que vemos numa obra de arte, ou as associações que fazemos com as formas que observamos, são de dois tipos:
(a) Aqueles que parecem mais intencionais ou racionais: Por exemplo, ao contemplar um retrato, dizemos "trata-se de uma pintura de um homem", porque vemos naquelas manchas uma forma que coincide com o conceito que temos do que é a forma de um homem. Nestas ocasiões parece que somos senhores do nosso julgamento sobre a obra.
(b) Aqueles que parecem brotar em nós espontaneamente: Por exemplo, ao contemplar um retrato, podemos nos surpreender: "Isto me traz idéias e sentimentos dos quais já havia me esquecido, ou sobre os quais nunca havia pensado!" Parece, então, que os significados que nos ocorrem a partir da observação daquela superfície manchada brotam em nós espontaneamente.
Em qualquer caso essas associações fazem parte do repertório pessoal de idéias, conceitos e sentimentos do observador da obra.
O artista, ao fazer seu trabalho, usou, conscientemente ou não, suas próprias idéias, mas o objeto de arte não pode contê-las ou transmiti-las. São os neurônios que as contêm e transmitem, e isto a obra de arte, enquanto objeto, não tem.
Se, vendo uma obra, podemos interpretá-la de forma semelhante à que seria a interpretação do artista, é apenas porque, sendo todos humanos e vivendo num mesmo mundo, temos repertórios de idéias e sentimentos semelhantes.
O estudo da arte e da cultura em geral nos permite ampliar esses repertórios, e, portanto, possivelmente, apreciar a arte com uma profundidade maior. Mas isso não muda o primeiro aspecto importante de notar nesses comentários: Os significados que vemos na obra de arte só podem ser o que já temos dentro de nós.
O segundo aspecto importante de notar é que, quaisquer que sejam as associações que fizermos à obra de arte, "conscientes" ou surgidas "espontaneamente", estaremos sempre exercendo nosso julgamento, nosso livre arbítrio.
2.6. A primeira função da arte: Portanto, podemos dizer que a função da arte (aqui também, função num sentido análogo àquele da matemática) é o exercício da liberdade.
2.7. A segunda função da arte: O exercício da liberdade é condição necessária para a construção do conhecimento. Talvez seja válido dizer até que é pelo menos uma de suas causas. A demonstração deste argumento poderia render um texto longo, portanto vou me limitar à citação de uma evidência e de um mito bíblico.
Quando apreciamos uma obra de arte pode ocorrer, como vimos, que significados nos surjam "espontaneamente". Ainda que eles já estivessem em nós, foi através dessa apreciação e desse exercício de liberdade que eles se tornaram conscientes e mais acabadamente elaborados. Esta é a evidência de que o exercício da liberdade é condição e causa da construção do conhecimento.
Já o mito bíblico é aquele narrado em Gênesis, capítulo 3: Ao exercer a liberdade de comer o fruto proibido, o homem adquiriu conhecimento.
Desse modo, podemos dizer que a segunda função da arte é a construção do conhecimento.
2.8. Conclusão - A definição da arte e seus corolários: Então, sintetizando à moda matemática, podemos definir:
A arte tem como domínio a forma e sua função é o exercício da liberdade e a construção do conhecimento.
Donde decorre:
A obra de arte é uma máquina para o exercício da liberdade e para a construção do conhecimento.
A atividade do artista é a engenharia de máquinas para o exercício da liberdade e para a construção do conhecimento.
3. O valor da crítica de arte e da opinião do artista sobre sua obra
A crítica nos ajuda a ver a arte de forma mais profunda. As opiniões do artista a respeito do que fez, as historinhas sobre o que pensou antes, durante ou depois da execução da obra também podem ser interessantes.
Mas elas podem ser perigosas, talvez especialmente as opiniões do artista, se forem vistas como as interpretações "corretas" do que uma obra significa (pois corresponderiam àquilo que o autor da obra "realmente quis dizer"). Este tipo de visão limita as funções da arte. Ao invés de exercer seu julgamento, de exercitar sua liberdade, o apreciador fica ocupado em entender o que o artista "quis dizer".
É por isso que eu em geral não sei direito o que responder quando alguém vê uma obra minha e pergunta: "O que você quis dizer com isso?" Normalmente não respondo nada ou digo qualquer coisa que na maior parte das vezes parece enfadonho. O problema é que não sei o que dizer. E, quando acho que sei, penso que se disser estarei roubando do meu interlocutor uma parte da sua liberdade.
4. Os "tipos" de arte
Outra pergunta que acho difícil de responder é a seguinte: "Que tipo de arte você faz? Qual é o seu estilo?"
Os rótulos que damos às escolas, movimentos, correntes, etc. artísticos são úteis para sabermos do que falamos quando discorremos sobre a História da arte. Mas a rigor não fazem muito sentido. Por exemplo:
4.1. Arte conceitual e arte concreta: Vimos que a arte só se realiza quando há alguém que a aprecie. Nessa apreciação a pessoa faz associações, vê significados na obra, etc., em poucas palavras, forma conceitos. Portanto, toda arte é conceitual.
Por outro lado, não há arte se não há um objeto de arte concreto. Portanto, nenhuma arte é conceitual, ou toda arte é concreta.
4.2. Arte figurativa e arte abstrata: Vimos que um objeto de arte, em si, é um conjunto de formas. Se ele corresponde ao conjunto de formas que chamamos de homem, paisagem, etc., trata-se de mera coincidência. Em qualquer caso, estaremos sempre lidando com um conjunto de formas, ou de figuras (de homem, de paisagem, de linhas, retângulos, triângulos, círculos, etc.) Portanto, toda arte é figurativa.
Porém, como formamos idéias a partir dessas formas, e como as idéias são abstratas, toda arte é abstrata.
4.3. Arte realista: A realidade em que o homem vive é produzida pelo próprio homem, pela cultura. Por exemplo, houve tempos em que o Sol girava em torno da Terra. Os que viam indícios de que as coisas podiam ser diferentes eram tratados como indivíduos perigosos, mais ou menos da mesma forma como hoje é tratado quem questiona determinados usos das análises de risco financeiro e da engenharia.
A arte, sendo uma das formas de produção da cultura, também produz a realidade em que vivemos. Portanto , toda arte é realista.
4.4. Arte interativa: Há quem diga que a arte de hoje deve ser "interativa", isto é, deve produzir obras que possam ser tocadas, cheiradas, entradas, comutadas, etc. pelo seu apreciador.
Não tenho nada contra as obras ditas "interativas", mas acho que se o apreciador de um quadro (que é para ser "apenas" visto) diz que com essa experiência tudo "fica estático" e que não há "interação" entre ele e a obra, então pelo menos uma das seguintes coisas está acontecendo:
(a) A obra é realmente ruim e não merece um tempo maior de observação. Não é arte. Não é máquina para o exercício da liberdade e para a construção do conhecimento.
(b) O apreciador não tem sensibilidade. Só consegue sentir o próprio interior se passar por experiências como um passeio numa montanha russa. Se tal pessoa quer emoções que só encontrará num parque de diversões, perde tempo observando obras de arte.
4.5. Arte baseada em "novos meios e tecnologias": Há ainda quem defenda que a arte atual deve usar novas tecnologias e meios (ao invés de telas e pincéis "ultrapassados", por exemplo, vídeos e computadores).
Pessoalmente, sou um admirador das novas tecnologias. Mas limitar, em princípio, a arte a determinados meios de expressão é limitar o campo de possibilidades que as formas nos oferecem. Isto é contraditório com a idéia de uma atividade cuja função é o exercício da liberdade.
O interesse por trás dessa limitação parece ser o que vemos não raramente: Obras que servem mais como promoção dos fabricantes dessas "novas tecnologias", ou como propaganda da ideologia dos "novos tempos", em que tudo seria resolvido pelas "novas tecnologias" (e pelo comportamento humano "adequado" ao uso delas).
O julgamento de uma obra de arte deve ser sempre a posteriori, isto é, o que interessa é o resultado final, a obra acabada, e não os meios e ferramentas que o artista usou no seu trabalho.
5. Arte e algumas outras atividades
É comum a confusão entre arte e outras atividades. Essa zona cinzenta que as separam é o que poderíamos chamar talvez de "imprecisão de medida", a exemplo do que fazem as ciências exatas. A imprecisão de medida existe em qualquer atividade humana, não apenas nas ciências exatas.
Isto não quer dizer que não possamos distinguir o que é arte e o que são outras atividades. Por exemplo:
5.1. Arte e entretenimento: A Mídia costuma tratar num mesmo capítulo as artes, os espetáculos, o cinema, a TV, a gastronomia, os passeios nos parques da cidade, o humor, a diversão, as colunas sociais, o horóscopo, as fofocas sobre quem cada personalidade famosa está namorando, enfim, trata arte como uma variedade do entretenimento em geral.
Entreter é divertir, distrair. A arte tem também seu aspecto lúdico, mas não se confunde com o entretenimento, que pode distrair com o propósito de desviar nossa atenção do que é importante e embotar nossa capacidade de crítica e julgamento.
5.2. Arte e comunicação: Comunicação, dizem os manuais, é um processo que pressupõe um transmissor, uma mensagem, um meio de transmissão e um receptor.
Na arte o que o seu apreciador capta são significados que já estavam dentro dele mesmo. Neste sentido a arte não comunica nada, pois não tem mensagem. Portanto, não pode ser comunicação.
5.3. Arte e decoração: A missão da decoração é tornar ambientes funcionais, compromisso este totalmente estranho à arte. Por exemplo, a decoração de uma sala de cirurgia deve obedecer a critérios que facilitem o trabalho dos cirurgiões e que favoreçam a assepsia, a decoração de uma cadeia deve seguir preceitos de segurança.
Essa funcionalidade pode incluir a estética ou a tipicidade, dependendo do ambiente a ser decorado: Numa cantina italiana colocaremos garrafas de vinho penduradas no teto, numa igreja, imagens que favoreçam a religiosidade, num bordel, imagens eróticas, etc.
Ao decorar a sala de um lar, em geral, prevemos inicialmente onde ficará a televisão. A partir daí dispomos os móveis. Para completar, distribuímos objetos de decoração pelo ambiente, cujas funções serão torná-lo agradável e dizer algo sobre o dono da casa.
Esses objetos podem ser, por exemplo, uma máquina velha quebrada, um cartaz publicitário desbotado, o desenho de uma criança, de um louco ou até uma obra de arte.
Quando usamos uma obra de arte com funções decorativas, estritamente do ponto de vista dessas funções decorativas, queremos associar ao dono da casa uma imagem de erudição e refinamento. Se a obra for cara ou de um artista famoso, estamos também dizendo que o dono da casa é rico, ou pelo menos amigo de artistas famosos, ou de pessoas ricas, de quem ganhou tal objeto.
Fica clara, por esses comentários, a diferença entre arte e decoração. Ao notá-la não quero dizer que uma atividade é superior ou mais nobre que a outra, apenas que cada uma tem seu objetivo: É porque a funcionalidade do ambiente é o objetivo fundamental da decoração que não faz sentido colocar imagens de santos nos bordéis ou eróticas nas igrejas, por mais belas ou significativas artisticamente que elas possam ser.
Essa funcionalidade do ambiente pode até ser levada em conta na produção de objetos de arte, mas é totalmente alheia à essência da própria arte: O objeto feito para decoração poderá ser também de arte apesar de ter sido feito para decoração e não por causa disso.
É comum as pessoas dizerem que querem quadros que combinem com seus sofás, para desespero de alguns artistas. Pessoalmente acho legítima essa pretensão, mas temos de distinguir as coisas com clareza:
Se você tem um objeto de decoração que não combina com seu sofá, certamente deve trocar o objeto de decoração.
Já se tiver um objeto de arte que não combina com o sofá, deve trocar o sofá e talvez até a sala inteira. Afinal, as pessoas não projetam seus aposentos em função da televisão? Por que deveria ser diferente com as máquinas para o exercício da liberdade e da construção do conhecimento? Por acaso, se acontecesse do Altíssimo descer à Terra envolto numa nuvem e mandar o Papa lhe dar a Capela Sistina de presente, você removeria dela os afrescos do Michelangelo por achar que eles não combinam com o novo sofá que você comprou para colocar lá? É claro, estes comentários são válidos se você quiser que o ambiente combine com a obra de arte, o que, do ponto de vista da arte, não é necessário.
5.4. Arte, ilustração, publicidade e propaganda: A ilustração, a publicidade e a propaganda têm por objetivo descrever uma idéia determinada a priori. Portanto, são mais relacionadas à comunicação do que à arte.
A publicidade e a propaganda têm outras funções claramente definidas (mais claras na língua inglesa do que na portuguesa). A da primeira é motivar a compra de bens e serviços e a da segunda é estimular adesões a determinadas visões políticas ou ideológicas.
A arte não vende, não motiva, não pede adesão. Sobretudo isto: Não pede adesão. Por isso a publicidade e a propaganda não são arte.
5.5. Arte e política: A arte foi, ao longo da História, usada para fins políticos, mas este não é um aspecto que faça parte da sua essência. Analogamente ao que comentei sobre arte e decoração, a arte política será arte apesar de ser política e não por causa disto.
Leonardo da Vinci, que dispensa apresentações, era muito requisitado como engenheiro de máquinas de guerra, além de como artista. Mesmo suas obras artísticas, como foi o caso das obras da maioria dos artistas da História (se não de todos), seguiam critérios que hoje chamaríamos possivelmente de "politicamente corretos", no mínimo. Dizer o que a respeito dele? Que era medíocre (ou genial) como artista por ter sido também servo do poder?
Os artistas, pessoalmente, podem optar por alternativas políticas "progressistas", "revolucionárias" ou "conservadoras", mas seu ofício é como outro qualquer: Se tivermos um câncer, vamos escolher para extirpá-lo o melhor cirurgião que pudermos encontrar, independentemente dele ser contra ou a favor do poder instituído. Por que com a arte e os artistas deveria ser diferente?
6. Arte e mercado (1)
No mundo atual ganhamos nosso sustento colocando no mercado o produto do nosso trabalho. Para a arte (aliás, para qualquer atividade) isto implica em duas questões: Seu preço e sua propriedade.
6.1. O preço da obra de arte: O preço da obra de arte é determinado pela sua qualidade e pela promoção do artista.
A promoção, por sua vez, como atividade independente, pode ser mais ou menos eficiente. Van Gogh, por exemplo, vendeu apenas um quadro durante toda sua vida. Talvez isso tenha sido também conseqüência de questões típicas da sociedade do século XIX e da saúde psicológica de Van Gogh, mas o fato é que ainda hoje podemos encontrar bons artistas com obras pouco valorizadas no mercado (e artistas apenas medianos com obras bem valorizadas) devido a uma promoção de diferentes graus de eficiência.
A obra de arte se torna, pelo menos até certo ponto, em um fetiche fabricado pela boa promoção. E podemos criar fetiches, ou valor "de mercado", a partir de quaisquer objetos.
A este respeito a arte talvez ocupe uma posição privilegiada atualmente; ela se mostra mais claramente, é mais transparente: Creio ser mais comum, mais fácil ou pelo menos mais rentável criar fetiches em torno produtos simples, de consumo amplo, para vendê-los como se fossem "exclusivos" (aliás, é engraçado chamar de "exclusivos" objetos que saem aos milhares de uma linha de montagem e mais engraçado ainda as pessoas, de tão acostumadas a isso, considerarem tal idéia normal e até um aspecto a ser levado em conta em suas decisões de compra). Creio ser mais difícil, ou no mínimo menos rentável, promover a obra de um artista de qualidade aquém de mediana para vendê-la como algo melhor do que realmente é (isto é, por um preço maior do que o que vale).
De qualquer forma, parece-me evidente, pelas razões expostas acima, que o preço, a promoção, as possibilidades que temos de criar fetiches no mundo de hoje, ainda que sejam questões importantes por terem grandes implicações para os meios de vida dos artistas e para a destinação final das obras de arte, são estranhos à essência da arte.
6.2. A propriedade da obra de arte: No mercado (ou seja, no mundo em que vivemos) a propriedade é algo da maior importância, visto que é a partir dela que podemos comercializar objetos.
Porém, se a arte se forma completamente na mente do seu apreciador, sua "propriedade" é de quem a aprecia. E mesmo dizer isto é uma imprecisão, pois ainda que as idéias do observador "pertençam" a ele, são idéias mais ou menos comuns à cultura em que vivemos.
A noção de propriedade, portanto, é estranha à arte.
7. Arte e mercado (2) - Um comentário econômico para finalizar
Este texto foi escrito em fevereiro de 2.008 e revisado em maio de 2.009. Nessa revisão procurei melhorar a redação e suprimir o que me parecia supérfluo para o tema tratado, mas seu conteúdo básico foi mantido.
Algumas de suas passagens, especialmente aquelas em que posso parecer irônico em relação a certos usos que se fazem das agências de riscos financeiros e da engenharia, poderão ser vistas como ultrapassadas, agora que se tornou comum criticar Wall Street e que as esperanças da maioria foram renovadas pela eleição do primeiro Presidente negro dos EUA (ou, como diz o Eduardo, um mecânico amigo meu, negro não, moreno).
Gostaria que assim fosse, que mudanças significativas estivessem finalmente a caminho, mas ainda não encontrei sinais consistentes disso. Talvez seja a minha falta de conhecimento de economia, mas, pelo que vejo, todos os esforços que vêm sendo feitos para debelar a crise econômica que se tornou mais aguda a partir de setembro de 2.008 visam preservar o funcionamento dito "livre" dos chamados "mercados". Em outras palavras, até agora, procuram-se soluções que permitam que as coisas voltem a funcionar como antes.
A este respeito cito alguns trechos do artigo intitulado "Acentuando o positivo", de Paul Krugman, Prêmio Nobel de Economia de 2.008, publicado no jornal O Estado de São Paulo de 9 de maio de 2.009, logo após a divulgação dos resultados dos testes de estresse a que o Presidente Obama decidiu submeter os bancos americanos:
(...) Mesmo antes de serem anunciados, o secretário do Tesouro, Timothy Geithner, disse que os resultados (dos testes de estresse) seriam "tranqüilizadores".
Mas, para se sentir realmente tranqüilo, depende do que você é: um banqueiro ou alguém tentando ganhar a vida em outra profissão.
(...) sobre a qualidade dos testes de estresse em si (...) os reguladores não têm os recursos necessários para fazer uma avaliação realmente cuidadosa dos ativos dos bancos e, de qualquer maneira, permitiram que os bancos negociassem sobre o que os resultados diriam. Uma auditoria rigorosa com certeza não foi.
(...) os bancos estão fazendo empréstimos cobrando juros elevados, e não pagando nenhum juro sobre os depósitos (garantidos pelo governo). Com o passar do tempo, podem estar de novo ricos.
(...) ante a possibilidade de perdas maiores, a relutância do governo em controlar os bancos ou deixá-los ir à falência cria uma situação de "cara, eles ganham, coroa, nós perdemos". Se tudo correr bem, os banqueiros vão ganhar muito. Se a estratégia fracassar, os contribuintes pagarão por mais um resgate financeiro.
(...) Alguém se lembra do caso de H.Rodgin Cohen (...) tachado pelo The New York Times de "eminência parda de Wall Street"? (...) Bem, esta semana Cohen disse que o futuro de Wall Street não será diferente do passado recente, e declarou: "Não estou nada convencido que exista alguma coisa inerentemente errada com o sistema". Ei, e essa pequena coisa sobre causar o pior colapso global desde a Grande Depressão? Não importa.
São palavras aterradoras. Elas sugerem que, enquanto o Fed e o governo Obama continuam insistindo que estão comprometidos com uma regulamentação financeira mais rígida e uma supervisão maior, os "insiders" de Wall Street falam da indulgência da política bancária até agora - sinal de que, em breve, conseguirão voltar a jogar o mesmo jogo de antes."
Espero que Krugman e outras opiniões sombrias estejam pecando por excesso de pessimismo, pois, como ele diz, se as coisas não derem certo, seremos nós que pagaremos.
Novamente, talvez a arte esteja em uma situação privilegiada nesse contexto, pelo menos sob certos aspectos, pelo menos enquanto esse contexto se mantiver razoavelmente dentro de parâmetros que costumamos chamar de civilizados. Como investimento, a arte é uma opção que tem seus atrativos. É um mercado um tanto especializado, mas foi sempre tido como seguro. E, hoje, parece mais seguro do que as ações das empresas petrolíferas, automobilísticas ou os títulos do Tesouro Americano.
2009
in www.aamaavda.webs.com

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