ANÁLISE DE DISCURSOS
(Texto escrito para a revista da SBPM –
Sociedade Brasileira de Pesquisadores de Mercado,
por volta de 2002, revisto em julho de 2011, pelo autor:
Augusto de Almeida, artista plástico e pesquisador)
Parei o carro no sinal fechado e o mendigo, em uma cadeira de rodas, postou-se ao meu lado.
Ao contrário do comum dos pedintes, ele não fazia cara de coitado nem se aproximou demais do meu veículo. Manteve-se parado na calçada com o peito empinado e (apesar da falta de dentes) tinha uma atitude digna e o cabelo (apesar de sujo e sebento) penteado.
Começou seu discurso como se não falasse comigo, como se fosse um político num palanque pregando para o povo, olhando para o alto, mas claramente se dirigindo a mim:
“Eu estou nesta profissão de pedinte há 28 anos. Antes de começar, eu fiz uma pesquisa, para conhecer o mercado. Contratei uma firma, apliquei a estatística. Fiz uma pesquisa de 35.000 entrevistas em todo o Brasil perguntando quais eram as três coisas de que o brasileiro mais gostava. As três coisas de que o brasileiro mais gosta são Carnaval, futebol e dar dinheiro para os outros. No começo do Governo do Fernando Henrique eu pensei em montar um negócio 24 horas para receber dinheiro de quem quisesse dar. Mas aí o Brasil não ficou tão bem como eu esperava, o mercado não se desenvolveu tanto, e eu tive que adiar esse plano. Daqui a uns 2 anos eu vou me aposentar e aí eu monto esse negócio.”
E aí, virando-se para mim diretamente pela primeira vez, ele falou:
“O senhor sabia que o brasileiro é tão viciado em dar dinheiro para os outros que às vezes o cidadão acorda de madrugada desesperado, e está tudo fechado, Igreja, tudo, ele não tem para quem dar dinheiro, e acaba se suicidando?!”
Eu e minha mulher Simone (que estava comigo no carro e que também trabalhava com pesquisa de mercado) rolávamos de rir. O pedinte ria de forma contida para não comprometer sua atuação teatral.
Seu discurso tinha todos os ingredientes que fazem uma boa comunicação (ou pelo menos os principais de que posso me lembrar):
1. Manteve a atitude digna, sem se fazer de pobre coitado ou dependente, coisa que acaba deprimindo o público alvo.
2. Não se aproximou demais do carro, não foi invasivo. Isto, em conjunto com o ponto 1 acima, transmite respeito ao público alvo e o faz sentir-se bem.
Se o público alvo não se sente bem na primeira aproximação que tem com um produto (em geral esta se dá através da comunicação) a tendência é que a continuidade e o aprofundamento dessa aproximação (que no fim resultariam numa venda/compra) serão mais difíceis.
3. Ele tinha uma mensagem única e clara (USP – Unique Selling Proposition): O mendigo queria dizer, em suma, que dar dinheiro a ele faria bem a mim. E ele estava ali para me prestar esse benefício. Note-se ainda (ousada sofisticação) que apesar de clara, a mensagem não era explícita.
4. Ele usou a linguagem adequada ao seu público alvo (eu, um trabalhador de classe média, vestido com terno e gravata):
4.1. Mencionou a realização de pesquisa,mostrando-se atualizado quanto aos modernos instrumentos do marketing (qual o trabalhador de classe média hoje em dia não fala de marketing e pesquisas e mercados e etc.?) e mesmo “científico”: “validou” sua “pesquisa”pela menção de uma amostra grande, a prova mais cabal, aos ouvidos leigos, de que uma pesquisa é “verdadeira”.
4.2. Apresentou-se como um empreendedor, um futuro empresário que entende de marketing, das necessidades dos consumidores e dos modernos recursos para atendê-las (serviços 24 horas).
4.3. Comentou a situação política do Brasil, posicionando-se como a maioria da classe média, que hoje (por volta de 2002) diz exatamente o que ele disse: o Governo FHC foi depositário de esperanças não realizadas.
Isto abrange desde correntes à direita como o PFL até setores simpáticos ao PT. Nesta fase em que vivemos, de pré-campanha eleitoral, não é à toa que seja mais ou menos isso o que dizem, pelo menos, o Ciro Gomes, o Itamar, o PT (que quer mudar os rumos do país, mas sem assustar os empresários), o Serra e a Roseana. Com esse posicionamento amplo, o mendigo aumentou a possibilidade do seu target (eu) se identificar com ele.
4.4. Concluindo, o uso da linguagem adequada ao público alvo (pelo mendigo) foi positivo não apenas para ele se fazer entender mais claramente, mas também para causar maior envolvimento com esse mesmo público.
Dei-lhe a esmola (normalmente não dou esmolas) pela competência demonstrada no discurso.
Do ponto de vista da metodologia das pesquisas, no entanto, o mendigo pecou em dois aspectos:
Primeiro, a menção de amostra grande em si não quer dizer nada. Aumentar uma amostra, se ela tem erro de método de coleta de dados, só aumenta o viés que já estaria contido na primeira entrevista.
Segundo, se o objetivo dele era conhecer o mercado de esmolas ele não precisava perguntar do que o brasileiro gosta.
Para se obter uma resposta clara precisamos de uma pergunta clara.
Exemplo deste tipo de erro seria perguntar, em uma investigação sobre lembrança de marca, se as pessoas gostam de ver crianças (ou mulheres peladas) em comerciais.
Gostando elas ou não dessas imagens, o que interessa para o anunciante é se o seu público alvo se lembra da sua marca. Se o público gostou ou não do(a) modelo usado(a) na comunicação é uma questão secundária.
No entanto, como o mendigo não tinha como objetivo vender pesquisa ou consultoria de marketing, e sim estabelecer pontos de identificação com o seu target (eu), seu discurso não deve ser condenado por esses “erros”.
O mendigo foi um mestre ao estabelecer pontos de contato comigo.
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